terça-feira, 31 de maio de 2011

Posso mentir e dizer a verdade?


É comum associar sinceridade à verdade. E mentira à inverdade, ou seja, à falsidade. Se lançarmos um olhar filosófico sobre estas duas associações notaremos, porém, como nem a primeira, nem a segunda, são necessárias. A primeira não é necessária porque podemos mentir e dizer algo verdadeiro. A segunda, porque podemos dizer, com sinceridade, algo falso.

Vamos partir de uma frase: "João não gosta de Maria". Se João gosta de Maria, ela é considerada verdadeira. Se João não gosta de Maria, falsa. Contudo, antes de dizermos que a frase é falsa ou verdadeira, devemos compreender a frase. Logo, dizemos que a frase é verdadeira quando 1) compreendemos a frase, ou seja, entendemos o seu sentido e 2) verificamos que a frase enunciada corresponde ou não aos fatos.

Os filósofos se perguntaram e se perguntam o que é uma frase (no vocabulário técnico, uma "proposição"), o que significa "compreender", o que é o sentido de uma frase, o que significa "corresponder aos fatos". Os filósofos pesquisam, inclusive, o que são fatos.

Para os nossos interesses, basta entendermos que uma frase, para ser considerada verdadeira ou falsa, precisa ser compreendida e validada. E que quando dizemos que é verdade que João não gosta de Maria, estamos afirmando, com outras palavras, que a frase "João não gosta de Maria" é verdadeira. É importante observar este ponto: fatos não são verdadeiros ou falsos, já que, aparentemente, empregamos os fatos para saber se uma frase, que descreve um fato, é verdadeira ou falsa.

Em geral, quando uma pessoa é sincera, ela quer dizer a verdade. O problema é que, muitas vezes, embora queiramos dizer a verdade, incorremos no erro e dizemos uma falsidade. Imagine que João e Maria são namorados, se amam e assumiram um compromisso de monogamia. Imagine, também, que João tem um irmão gêmeo, Paulo. Pedro, que não sabe que João tem um irmão gêmeo, vê Paulo beijando na boca de outra menina. Pedro chega a um amigo e diz "João não gosta de Maria". Com efeito, ele chegou a esta conclusão e foi sincero ao comunicá-la, mas não disse uma frase verdadeira. Foi sincero e não disse a verdade. Disse, sim, aquilo que, para ele, parecia ser verdade.




A situação contrária também é possível: podemos mentir e dizer a verdade. Imagine que Pedro já sabe da existência do irmão gêmeo de João, mas, com más intenções, pretende prejudicar João, difamando-o ao afirmar a todos que "João não gosta de Maria". E imagine que João realmente não gosta de Maria. Pronto: Pedro mentiu e disse a verdade.

Em suma, todos nós podemos:
  1. Querer dizer algo que pensamos ser verdadeiro e dizer a verdade (sinceridade + verdade);
  2. Querer dizer algo que pensamos ser verdadeiro e dizer uma falsidade (sinceridade + falsidade);
  3. Querer dizer algo que pensamos ser falso e dizer uma falsidade (mentira + falsidade);
  4. Querer dizer algo que pensamos ser falso e dizer a verdade (mentira + verdade).
A sinceridade é, assim, uma associação que nós fazemos entre nós mesmos (nosso querer dizer) e aquilo que nós dizemos. Quando somos sinceros, temos a intenção de que nosso interlocutor reconheça que queremos dizer aquilo que dizemos. Quando mentimos, também temos a intenção de que ele reconheça que queremos dizer aquilo que dizemos, muito embora pensemos (e não necessariamente saibamos) que o oposto é verdade.


Mas professor, eu estou surtando! Pra que todo esse discurso?
  1. Para não chamarmos de mentirosa uma pessoa que apenas disse algo falso. E para não confundirmos falsidade do sujeito que enuncia uma frase com a falsidade da frase enunciada. Quando chamamos uma pessoa de "falsa", referimo-nos a uma discrepância entre o que a pessoa diz e o que ela quer dizer. Uma pessoa falsa não é necessariamente uma pessoa que diz frases falsas, mas que mente, mesmo se, quando mente, diz a verdade.
  2. Para as turmas de 3a. Série, para aplicarmos nas atividades de nossas próximas aulas. Já pensaram como a comunicação social é comparável com a comunicação interpessoal? Quando um jornal, por exemplo, afirma ter um "compromisso com a verdade", chama para si a responsabilidade de uma pessoa que 1) quer dizer a verdade e 2) diz a verdade. A credibilidade de um meio de comunicação se baseia nesta relação que ele estabelece com seu público, tal qual a credibilidade de uma pessoa junto àqueles que com ela convivem. Para alcançar esse objetivo, é preciso que as pessoas que estão por trás do jornal assumam uma postura, uma conduta; é preciso que elas abracem valores. A Ética começa a entrar no terreno da comunicação social quanto mais compreendemos que a comunicação sempre é produzida, mediada, recebida, interpretada por sujeitos
Por enquanto é isso, pessoal.

Um abraço,
Carlos

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